Frater BenHoor

Prólogo

Era um dia de abril, uma quarta-feira, fazia um pouco de calor e o céu era perfeito como a maioria dos dias de outono. Ventava pouco ou quase nada e as pessoas chegavam de toda parte. O silencio discreto da manhã ia se transformando num bulício mais intenso na medida em que o sol ia partindo e tingindo o céu de laranja e vermelho. Naquela tarde, ele pegou o trem e partiu para uma nova jornada, prevista e anunciada. Ele mesmo esteve com seu filho alguns dias antes, no meio de uma madrugada, para falar de sua partida.

I – Primeira infância

No interior da Paraíba, num lugarejo nas proximidades de Campina Grande, habitava uma típica família nordestina, criada por Severino e Dona Ana. Com onze filhos deste casamento, sobreviviam da lavoura e realizavam o lucro do trabalho na feira da cidade. Era uma vida severa, com muitas privações e parcos recursos. Todos os filhos que tivessem força para erguer uma enxada levantam cedo e partiam para a plantação de mandioca e milho. Os meninos mais novos, crianças de pé no chão, buscavam águas no açude em latas velhas penduradas em pares e carregadas nas costas, para abastecer a casa. As meninas cuidavam dos serviços do lar, alimentavam os porcos e galinhas com o que era possível e ajudavam sua mãe como podiam.

A casa muito simples tinha um telhado mau feito, que só não era pior porque não chovia mesmo. Não havia caixa d’água ou instalações elétricas. A luz era do lampião e todos dormiam muito cedo. Nas noites de lua cheia os irmãos mais velhos, junto com a Matriarca, contavam histórias sobre assombrações e lobisomens e os mais novos ficavam morrendo de medo de dormir sozinhos, o que naturalmente era impossível numa casa com tanta gente. Chuva por lá era coisa tão rara que quando acontecia era recebida com gratidão, mas também com respeito, quase que com medo, pois não havia preparo para lidar com ela. Não é de se espantar que mesmo depois de maduros, alguns deles continuassem com medo de trovoadas. A alimentação e os cuidados com a saúde eram precários e a vida na roça era muito dura, muito mais do que podemos supor atualmente.

Tarcisio era o filho caçula da família. Nasceu no dia 02/ 08/ 1952, mas a
distância da cidade e as limitações da família acabaram fazendo com
que seu registro ocorresse oito dias depois. Daquele tempo vivido no
interior nordestino ele tinha poucas lembranças, pois seus irmãos mais
velhos resolveram tentar a vida no Rio de Janeiro e um a um, foram
deixando a casa e partindo rumo ao desconhecido, com o peito cheio de esperança e um sonho na cabeça, alimentados por varias histórias que ouviam aqui ou ali. Na medida em que chegavam, trocavam cartas com a família e encorajavam os demais a seguir o mesmo caminho, até que por fim, todos imigraram para o estado do Rio de Janeiro, para uma pequena cidade serrana chamada Mendes. Severino conseguiu um sitio para tomar conta e as coisas foram se ajeitando. As condições não eram boas, mas as privações não chegavam nem perto daquelas deixadas para trás. Os filhos mais velhos ficaram pela Capital no Rio e constituíram suas novas famílias no subúrbio carioca. Quase todos foram trabalhar como pedreiros e viveram o resto de suas vidas da construção civil. Os filhos mais novos e as moças, tiveram alguma oportunidade de estudar um pouco. Mas foi pouco mesmo. O garoto Tarcísio era querido por todos e sua mãe escancarava devoção. Sofreu como os demais, mas talvez tenha tido mais oportunidades que os mais velhos.

II – Juventude

Naquela pequena cidade foi criado e teve uma infância cheia de aventuras e desventuras. Garoto de bom coração, mas indolente e determinado, era conhecido por todos na cidade como “baiano”. Mesmo sem ter nunca sequer pisado na Bahia, ganhou essa alcunha. Fácil entender, porque nordestino sempre vai parar no mesmo saco e naquela época, a Bahia era o nome do saco. Até pouco tempo atrás aqui no sudeste, o saco era dos “paraíbas”. Mas sacos a parte, o moleque era popular, de muitos amigos e destacou-se como goleiro nas peladas de futebol. Namorador, sempre deixava sua mãe ciumenta com o coração na mão. Certa feita ele se enrabichou com uma bonita menina que trabalhava num circo que chegara à cidade. Com medo de que o filho fugisse com a moça quando o circo zarpasse, Dona Ana trancou o projeto de Don Juan em casa por uma semana, até ter certeza que o circo estava bem longe.

Naquele tempo a diversão da garotada era jogar bola, caçar passarinho, andar na bicicleta dos meninos mais abastados e tomar banho no açude da cidade, que na época tinha águas límpidas. Certa vez um amigo estava tomando banho nu e se meteu a besta de montar num cavalo que zanzava por ali, então um dos moleques deu com uma vara na traseira do cavalo e o bicho foi parar no centro da cidade, levando o peladão para todo mundo ver… foi hilário e rendeu uma semana de castigo para cada um deles.

Seus amigos, “preguinho”, “cabeção” e pelos menos outros dez se reuniam toda tarde na casa do Carlinho Marreco, filho do prefeito, para ver as lutas de Telecatch, onde Ted Boy Marino derrotava nos ringues de luta livre, vilões como Aquiles, Verdugo, Múmia, Rasputim e Barba Negra. Só o prefeito e mais meia dúzia de pessoas da cidade, tinham em casa uma TV. Carros eram raros de serem vistos na cidade e normalmente só pessoas muito abastadas os possuíam.

Trabalhava desde cedo e permaneceu estudando. Formou-se em contabilidade no seu ensino médio e começou a lecionar, logo arrumou um emprego numa agencia do Unibanco. Naquela época estava em todas as “vitrines”. Foi goleiro do Cipec e do Frigorífico, principais times da cidade e participou de campeonatos acalorados na região. Sua família comparecia em dezenas para prestigiar e sua mãe o fazia passar apuros nestes eventos, nos dias de hoje diríamos que era um “mico”. Imagine você disputando uma partida de final de campeonato e sua mãe gritando para você ter cuidado, pendurada ali no alambrado…

Nos bailes do final de semana lançava mão da sua calça boca de sino, seu sapato de salto estilo beatles e dançava de rostinho colado com as garotas “mais cobiçadas” ao som das músicas da jovem guarda.

Também tinha seus amigos no mundo da música e arranhava alguns acordes. Era mais um dos seus artifícios para estar cercado de gente e mulheres. No trabalho ia bem e conquistava gradativamente a confiança de todos e promoções. Em pouco tempo já tinha um bom cargo.

Ali ainda jovem, já estava o esboço do homem que seria o resto da vida. Um cara de muitos amigos, popular, conquistador, boêmio, com uma forte veia carpe diem, comprometido com seu trabalho e aqui entre nós, não podia ver um rabo de saia…

Talvez seu maior temor fosse a solidão. O silêncio o fazia conversar consigo mesmo e de alguma forma isto o incomodava. Mais tarde ele descobriria que é possível estar só, mesmo rodeado de pessoas. Esse encontro estava marcado para alguns anos depois.

Como seu pai, ele era católico praticante, ia regularmente à igreja e seguia os preceitos básicos daquela religião. Não seguia a risca todos os ritos, mas tinha lá sua bíblia, fazia suas orações e procurava “andar na linha”, do jeito dele é claro.

Uma de suas irmãs trabalhava numa cidade vizinha e numa festa dessas da vida, o apresentou a uma amiga. Uma jovem com sorriso lindo, cabelos compridos lisos caindo pelos ombros e castanhos escuros como os seus olhos, que eram levemente amendoados. Seu corpo era delgado, suas mãos finas como os traços do seu rosto e tinha uma beleza notável. O coração gelou num descompasso, mas ele era profissional em matéria de galanteio e não teve dificuldades de vencer a desconfiança natural daquela moça do interior. Ele tinha os olhos azuis, um sorriso largo, seu corpo era atlético e naquele tempo exibia suas madeixas compridas pouco acima dos ombros e um generoso bigode que o acompanhou por muitos anos. A moça era linda e o cara era boa pinta. Eles formavam um bonito casal.

 

III – Primeiro Casamento

Em 24 de março de 1973, enquanto o Pink Floyd lançava do outro lado do mundo o antológico álbum “Dark Side of Moon”, num sábado, numa pequena igreja de Seropédica, interior do Rio, Tarcisio e Walda se casavam. Ele com vinte e dois anos e ela com vinte.

Ela era uma costureira exímia, caseira como boa canceriana, pessoa simples e de muitas virtudes. Ele um bancário, leonino genioso e amigo leal, carismático, líder nato e em vias de alcançar uma gerencia. Dois jovens talentosos, bonitos e apaixonados. Foram morar em Mendes, tocaram suas vidas e claro, ele teria de dar adeus a sua vida de solteiro, com baladas, músicas, futebol e bebida. Seu foco no trabalho aumentou, conseguiu uma boa promoção e foi transferido para a cidade de Barra do Piraí – RJ. Alugaram um apartamento próximo ao centro e ele tornou-se sub-gerente. Tiveram o primeiro filho, Michael e dois anos mais tarde nasce a segunda filha do casal, Fabiana.

Aos poucos se afastava dos amigos de infância, uma demanda causada pela vida de casado, filhos, um pouco de ciúmes da mulher e trabalho. Mas sentia falta daquele convívio livre que tinha no passado, isso o incomodava um pouco.

A carreira estava com tudo e ele ganhara uma nova promoção, assumindo o cargo de inspetor de agencias (algo que conhecemos hoje como auditor). Sua atuação agora seria em nível nacional. Teria que rodar o Brasil inteiro para auditar as agências. Naquela época fazia isso em um fusca, que diga-se de passagem, era “o carro” nos idos dos anos 70. Rodava tanto que a empresa trocava o carro a cada ano.

O salário do banco era bom e sua mulher também trabalhava bastante. Conseguiram fazer alguma economia e logo construíram uma bela casa em Mendes. O pedreiro contratado era “ Armando boca de onça” que recebeu como parte do pagamento, uma Variant vermelha que pertencia a Tarcisio.

Naquela altura, as coisas não iam bem. O temperamento e os gostos do casal começaram a se mostrar cada vez mais desconexos. O casamento se desgastava a cada dia, a cada viagem, a cada festa e a cada caso. O ciúme, o desgaste, o cansaço e também o despreparo do casal jovem para tocar a vida com dois filhos foi consumindo cada gota de paciência e paixão. A família dele com seu disse-me-disse também inflamava as coisas de vez em quando. Cada um ao seu modo tornava as coisas mais difíceis para o outro, mas as aventuras dele tornavam tudo muito mais difícil. Nos últimos meses brigavam por qualquer banalidade e já não era mais possível ver saída. Então numa noite de quinta-feira, entre farpas ditas, gritos e discussões na presença de sua mãe e dos filhos, ele fez as suas malas e partiu.

Terminava um casamento com cerca de nove anos. Uma separação difícil, dura para todos e para os dois. Um filho tinha cinco anos e outro três anos. A maneira como tudo se deu dali para frente acabou evidenciando que ele era bom em conquistar e seduzir as mulheres na mesma proporção em que partia seus corações.

Ele recomeçou sua vida em Barra do Piraí – RJ, dividindo uma kitnet com um amigo. Ela ficou com a guarda dos filhos e foi morar no Rio. Foram tempos difíceis para os dois. Mas sem dúvida alguma o fardo dela era muito mais pesado.

O primeiro casamento terminou de maneira quase que litigiosa e Walda cortou completamente as relações com Tarcísio. Mais do que isso, guardou um profunda mágoa e nunca escondeu sua indignação, revolta e repúdio que tinha contra ele. Não escondia de ninguém, principalmente dos filhos. Ele, nunca proferiu uma palavra, uma mínima palavra sequer contra ela, ao contrário, sempre falava bem. O máximo que podia se ouvir dele, quando ela perdia a linha era “ela não é fácil”. Enão era mesmo. Mas ela tinha razão de sentir o que sentia. Mas ao agir como agia, perdia a razão tinha. A coisa não podia dar certo mesmo, mas eles dois e os filhos pagaram um preço alto demais por terem conduzido as coisas assim.

IV – Segundo Casamento

Pouco tempo depois ele já estava com uma nova namorada. Ela também era bancária e bem jovem, bonita dos cabelos castanhos cacheados e com um jeito meigo e cativante. Ele nunca deixou claro em que época exatamente ele conheceu Marlúcia, assim como também nada falou sobre um filho que teve fora do primeiro casamento com outra mulher. Àquela altura, isso não tinha muita relevância.

O novo relacionamento seguia firme e em já fazia parte dos almoços dominicais junto à família dela. Uma família modesta e muito simpática, que o acolheu como um filho desde o início.

Mensalmente ele visitava os filhos no Rio de Janeiro e durante muitos anos contava com a casa de sua irmã Terezinha em Nova Iguaçu para seu pouso e ali aconteceram boas festas, rodas de viola, comemorações, churrascos e também algumas confusões, coisa que aliás, não era pouco comum na família dele, cuja raiz tinha italianos, judeus, alguns povos europeus e um sangue quente nordestino. Na família predominavam os cabelos loiros e os olhos azuis e o sotaque nordestino era inconfundível. Dona Ana, por exemplo, tinha expressões homéricas, que faziam todos dobrar de rir.

Uma das principais qualidades de Tarcisio, é que ele era um grande agregador. Ele era o elemento catalisador que unia a família, que mesmo com seu esforço, aos poucos ia se dividindo e ficando cada vez mais afastada. Fazia sempre questão de reunir os irmãos, confraternizar, ajudar e ser sempre leal e amigo. Sempre que pode esteve junto aos irmãos e sobrinhos, estes diga-se de passagem, o tinham como um ídolo. Adoravam o “Tio Tarcísio”. Talvez fosse a maior fonte de inspiração para a molecada da família, porque era o tio mais novo, mais moderno, bem sucedido e charmosão. Mas sobretudo porque era um baita parceiro. Um ótimo contador de casos, embora costumasse contar o mesmo caso dezenas de vezes. Nesta matéria era um sujeito de primeira linha. E esses momentos na casa de Terezinha retratavam bem isso, porque ele quebrava o silencio com sua chegada e transformava qualquer monotonia em fuzaca, festa, roda de viola, batucada, longos e bons papos madrugada a fora. Momentos que enchem o peito de saudade daqueles que estiveram lá com ele.

Não tardou e se casou com Marlúcia e como a casa de Terezinha era parada certa, foi lá que tudo se deu, o rito e a festa. Foi um evento modesto, mas animado, talvez porque não quisesse fazer muito alarde, talvez porque não fosse muito comum naquela época as pessoas se casarem duas vezes, talvez porque como já tinha casado na Igreja Católica uma vez, ficasse impedido de outro rito de igual valor. Todos estavam felizes, mas a família ainda estava dividida com a situação. Alguns eram partidários da ex-mulher e achavam que aquele novo casamento era fogo de palha. Embora fosse um pensamento velado, as resistências que Marlúcia teve que quebrar para entrar na família não foram poucas. Ale disso ele tinha cerca de 32 anos, enquanto ela tinha seus vinte, para alguns era um disparate. Os filhos não estavam presentes, claro, porque eram ainda novos e ainda não tinham se acostumado com a idéia da separação.

Casamento consumado, pé na estrada em busca do litoral baiano. O esporte preferido de Tarcísio era pegar uma estrada, viajar, curtir uma praia e conhecer novos lugares. Em sua vida inteira viajou sistematicamente, de ponta a ponta do país e na imensa maioria das vezes, de carro. Adorava pegar umaestrada. Quemcomprasseumcarrodele,tinhaduascertezas,velocímetromuitorodadoecarro bem cuidado. Sempre zelava com cuidado da mecânica, da lataria, pintava, trocava, arrumava e sempre passava adiante um carro com qualidade. Era pouco comum vê-lo lavando um carro, mas quase sempre estava à procura de qualquer ruído para sanar. Durante sua vida mandou pintar vários carros, quase que os refazendo novamente.

Naquelas alturas suas viagens pelo banco já tinham cessado e era gerente geral de agencia. Então, logo no começo do novo casamento, recebeu uma proposta para assumir uma nova agencia, na cidade de Paraíba do Sul – RJ. Não pensou duas vezes. Partiu para lá, alugou uma casa e em tempo recorde, já estava instalado e dando comandos. A cidade ficava há menos de cem quilômetros de Barra do Piraí, mas para Marlúcia era uma eternidade aguardar um final de semana para encontrar os pais, mas o tempo se encarregou de corrigir isso.

Tarcisio não teve qualquer dificuldade de se relacionar na cidade, primeiro porque gerente de banco naquela época, nos anos 80, em cidade pequena, tinha status de prefeito. Além disso, era carismático e possuía predicativos que facilitavam as coisas. Algum tempo sua casa já era palco de festas, churrascos e confraternizações e nesse ponto Marlúcia tinha uma qualidade, sabia receber bem os amigos e as visitas em sua casa. Que mais um homem boêmio pode querer?

Identificado com o lugar, logo comprou um terreno, num dos pontos mais altos da cidade, com uma belíssima vista e iniciou a construção de uma nova casa. Lembra do “armando boca de onça” que tinha feito a primeira casa e recebeu uma variant como pagamento? Foi escalado para a obra da segunda casa.

Construiu uma bela casa e ao longo dos anos foi fazendo algumas melhoras gradativamente e por fim já era o cenário comum dos freqüentes churrascos de final de semana. Das três casas que construiu e vendeu ao longo da vida, esta é a que mais traz suas lembranças. Esta é a que retrata melhor quem ele foi. Não por ter boas instalações, piscina e área de lazer. Mas sim por tantos acontecimentos que ali se passaram que marcaram a história de muita gente, principalmente a dele.

São tantas histórias que dariam um volume a parte. Tem algumas hilárias. Certa vez um vizinho, da rua debaixo, bateu no portão da casa, no final de um sábado, com uma melancia toda espatifada nas mãos, roxo de nervoso, querendo saber quem foi o doido que tinha lançado a melancia na casa dele. Tarcisio atendeu o vizinho sem entender nada. Pediu para ele entrar, se acalmar um pouco e logo todo mundo que estava na casa foi ver a cena. O homem estava nervoso, falou que se a melancia tivesse caído na cabeça de alguém, poderia ter dado em morte. Pois foram investigar o fato. Nos fundos da casa havia uma área de lazer que dava vistas para toda a cidade. O limite era uma mureta baixa que dava para um terreno baldio três metros abaixo. Este terreno terminava numa íngreme descida até a rua debaixo, bem na casa do tal vizinho. Pularam o muro e foram conferir a cena do crime e se depararam, entre o mato, com um rico pé de melancia. Naturalmente uma delas madura, soltou-se, rolou e caiu lá embaixo na casa do homem. Isso aconteceu porque Tarcisio tinha o hábito de comer melancia freqüentemente, debruçado sobre o muro, lançando os caroços no mato. E numa dessa quase morre alguém por um ataque melancia voadora.

Trabalhou alguns anos no Unibanco de Paraíba do Sul e fez história por lá. Colecionou muitos amigos dentro e fora do trabalho e também muita influência. Mas o país passava por momentos complicados na economia e num daqueles vários pacotes que saíram, os bancos foram bastante atingidos e então o Unibanco fechou várias agencias, uma delas foi a de Paraíba do Sul. Mas Tarcisio gozava de bom crédito com seus diretores e também colegas de trabalho, logo foi escalado para assumir uma agencia na cidade vizinha, Três Rios – RJ. Ainda pelo banco, ia mensalmente a reuniões na cidade do Rio de Janeiro e sempre aproveitava essas ocasiões para dar uma passadinha rápida na casa dos filhos, nem que fosse para dar um abraço ou com um pouco mais de sorte, comer uma pizza. Para os filhos era um momento mágico, mas foram anos difíceis para eles, todos eles.

Trabalhou em Três Rios alguns anos, mas continuava residindo em Paraíba do Sul. Nesta época Marlucia deu a ele mais uma filha, Natália. A primeira e única filha do casal. Por uma dessas desventuras da vida, nasceu no feriado de finados quando passeavam em Barra do Piraí, onde nasceram os demais filhos.

Tiveram uma relação intensa, curtiram e viajaram muito, a casa era regularmente uma festa e ambos gostavam muito de receber, parecia uma química perfeita. E tinha mesmo tudo para ser.

V – O empreendedor

Após uma carreira de mais de vinte anos no Unibanco, Tarcisio sentia-se desgastado e cansado daquela rotina e os horizontes daquela carreira já não tinham o mesmo encanto. Ao contrário, já estava tão cansado que chegava ter ligeira repulsa. Sendo muito comprometido, nunca se deixou esmorecer e aos poucos se convenceu de que tinha que ter um plano B. Sua primeira tentativa há alguns anos atrás foi a entrada em sociedade com mais duas pessoas, para comprar um restaurante desses de beira de estrada, na BR393. Para quem é do ramo místico vai achar uma tremenda coincidência, inclusive as cidades em que viveu, ficavam à margem desta BR.

Voltando ao Plano B. Enquanto muitos pensavam, ele ia lá e fazia. Ele não era muito de planejar, preferia cair dentro do mato e abrir caminho. Foi assim que entrou em uma nova sociedade com um antigo amigo e cliente, para abrir uma pequena loja de materiais de construção. Na verdade o conceito era comercializar apenas cimento. E a coisa deu certo. Aos poucos o volume de venda foi crescendo e em pouco tempo já vendiam três caminhões de cimento por semana. Percebendo que havia vida fora do banco, procurou seus diretores e numa conversa franca colocou seu cargo à disposição. Ali, pelos quarenta e dois anos deixava a instituição onde fez uma bela carreira e foi tocar seu negócio.

Injetou mais dinheiro junto com seu sócio e ampliaram a loja. Agora comercializavam toda linha de materiais de construção. As vendas cresciam num ritmo galopante, mas aquilo que era apenas uma pequena aventura para o sócio, que era um empresário abastado da cidade.

Uma das virtudes que Tarcísio tinha era sua organização e seu talento para lidar com os números. Fazia balanços regulares do negócio, controles de caixa, conciliação das contas bancárias, agenda de pagamento de fornecedores e trazia no cabresto o crediário próprio. Nessa matéria foi exemplar. Sistematicamente fazia a demonstração dos resultados para seu sócio, que literalmente, só passava no final do mês para receber seus dividendos (em partes iguais). Naturalmente, apesar da antiga amizade, aquela situação incomodava um pouco a ambos. Tarcisio incomodava-se porque levava sozinho o negócio adiante e entendia que em determinados momentos era estratégico poupar e investir mais no negócio. Do outro lado, seu sócio, um homem de muitas posses, mas de visão financeira curta, só visava os lucros. Mês após mês isso foi se acentuando até que Hugo procurou Tarcísio para que desfizessem o negócio. Esua proposta era simples e radical: dividir todos os itens da loja por dois. Ele alegava que iria usar os materiais no prédio que estava construindo (acima da loja) e que Tarcísio poderia continuar tocando o negócio com a metade que lhe restava. Mas exigiu o ponto da loja, sob a alegação que faria ali parte da garagem do prédio.

Achando aquilo uma loucura, mas diante de uma proposta impositiva, deu andamento e ali estavam todos contando peça por peça, parafuso por parafuso. Seu filho mais velho, naquela época com dezesseis anos estava ali também, tão pasmo quanto os demais, dividindo os itens.

Partilha feita, Tarcísio ergueu uma pequena loja no terreno em frente e apesar do revés, seguiu adiante. Ele era incansável e muito empreendedor. Não conseguia esconder entretanto seu desapontamento com o sócio, eles tinham um relacionamento de quase dez anos e por diversas vezes Tarcisio tinha erguido a mão aquele amigo. Agora ainda estava magoado com a forma que tudo tinha terminado, principalmente sabendo que o outro não precisava (financeiramente) daquilo. Mas o pior ainda estava por vir.

Com cerca de três meses de funcionamento em sua nova loja, Tarcísio viu seu ex-sócio abrir uma loja de materiais de construção bem em frente à sua porta, exatamente onde a anterior funcionava. Foi um ultraje. Foi uma demonstração clara de falta de nobreza, pobreza de espírito e deslealdade.

Só restava uma coisa a Tarcísio, seguir adiante. E foi o que fez. Não se fez de rogado e renovou-se, mudou o visual de sua pequena loja, ofereceu mais opções de crediário e ampliou as instalações. Seguia firme crescendo e arrastando com simpatia e amizade, a clientela. Cada vez que um cliente atravessava a rua para comprar em sua loja, era como se marcasse um gol. Em pouco mais de um ano ele já estava com seu negócio estruturado e apesar de ter um concorrente bem na sua porta, encontrou seu espaço, mesmo com as idas e vindas da economia que sempre lhe causavam impacto.

Ali naquela loja surgiram muitos amigos. Tarcisio, além de vender, ia na obra, dava pitacos na escolha dos materiais de acabamento e até na arquitetura da obra, volta e meia um cliente viajava e pedia a ele uma mãozinha para dar uma olhada na obra… Isso fazia dele um cara muito especial e conquistou muitos amigos como comerciante.

VI – Surge um Mago

Um dia por volta de uma da tarde nos idos de 1992, entra na loja um senhor aparentando uns sessenta anos, baixo e bem magro, com óculos de armação grande, com cabelos e barbas grisalhos. Chegou até o balcão e perguntou se vendiam a prazo. Quem atendeu aquele senhor foi o filho mais velho, que estava trabalhando na loja há uma semana e não fazia a menor idéia de nada, pediu um momento, passou a mão no telefone e o pai informou que chegaria em dez minutos. Sabendo da notícia aquele senhor sentou-se numa lata de tinta que estava por ali, cruzou as pernas e pacientemente esperou.

Tarcísio chegou conversaram e logo saiu uma remessa de materiais para obra deste novo cliente. Seu nome era Euclydes Lacerda de Almeida.

O filho ficou intrigado com a rapidez que o crédito foi concedido àquele cliente. Tarcísio foi direto e disse que ele era um bom homem e que pagaria o débito. Esta era outra característica forte dele: sempre confiava e tomava decisões baseadas no seu feeling, ignorando alguns riscos e análises cartesianas. Por várias vezes ele parcelou e re-parcelou as dívidas de Euclydes, que ia honrando os compromissos apesar do aperto financeiro. Era tão apertado que não raras vezes usava o telefone da loja como se fosse seu, para ligar para os parentes da capital.

O fato é que Euclydes já era “da casa”, assim como outros clientes. Era raro o dia que não passava na loja, para tomar um café e fumar um cigarrinho com Tarcísio, dava um pitaco em alguma coisa, usava o telefone, lia o jornal e se bobear até atendia algum cliente no balcão. Tinha uma meia dúzia de clientes que estava naquele patamar. Sem contar os vizinhos, comerciantes ou não que tinham ali um ponto de encontro diário. Aquilo às vezes parecia mais uma boteco do que uma loja de materiais de construção, só não tinha cerveja e tira-gosto. Se bem que dependendo do horário e do dia, até tinha.

Numa de suas dezenas de passagens pela loja, Euclydes viu que Michael lia um livro do Paulo Coelho e com ar de censura perguntou “você está lendo o livro desse cara?”. Dez minutos atrás, outro cliente tinha passado por ali e feito exatamente a mesma pergunta, também com desprezo. Intrigado com a implicância rebateu “qual o problema com o livro?”. Euclydes, já virando de costas falou “esse cara foi meu aluno”.

Michael sempre teve uma curiosidade imensa sobre assunto místicos e vivia lendo sobre religiões e qualquer outra coisa que tratasse do universo metafísico. Sempre foi avesso aos dogmas, algo que construiu por si só, para desespero do pai, que travava com ele os debates acalorados, tentando converte-lo para a fé católica. Mas apesar da pouca idade, sempre conseguia deixar seu pai sem argumentos enquanto fazia as estatísticas da inquisição e outras incoerências da igreja. No final dos embates Tarcísio sempre ficava desapontado com o filho, mas ao mesmo tempo intrigado, porque algumas coisas que ouvia faziam realmente sentido. Mas a fé pode embasar os sentidos.

Michael visitou Euclydes em sua casa para saber mais detalhes sobre aquela história Paulo Coelho ter sido seu aluno. Conversaram por mais de cinco horas e Michael ficou extasiado, pois era a primeira vez na sua vida que encontrara alguém realmente ligado ao meio místico. Era como beber água na fonte. Aquelas visitas tornaram-se regulares e Michael insistia para que fosse aceito como aluno, mas era menor de idade e Euclydes dizia que só poderia fazer isso com autorização formal dos pais. O garoto acabou comprovando que o pai era radical nesse tema, católico de carteirinha, jamais iria concordar. Persistiu tanto que acabou aceito como probacionista.

Devorava livros com facilidade e fazia práticas e diversos exercícios místicos. Praticava Ioga, estudava cabala e como acontece com todo iniciante, acabou dando bandeira demais e seu pai logo quis saber “que tanto esse menino conversava com Euclydes?” Direto e reto como sempre, procurou Euclydes para saber qual era a resenha e este por sua vez, não menos direto explicou tudo, tim tim por tim tim.

Já ouviu o ditado que a curiosidade matou o gato? Pois é. Depois de ter ouvido as primeiras explicações de Euclydes, ficou intrigado e quis saber mais. Sentia um misto de aversão e entusiasmo com as informações que recebia.

Euclydes Lacerda de Almeida era um dos principais nomes de Thelema no Brasil, líder de uma ordem mística chamada A.’.A.’. e outra ordem, maçônica dissidente da OTO (Ordem dos Templos Orientais) ele era na pior das hipóteses, alguém com grande conhecimento na área mística e esotérica. Um iniciado. Tinha sido aluno de Marcelo Ramos Motta, o que lhe dava credenciais e reputação, além é claro de um conhecimento quase enciclopédico.

Michael não se identificou com a OTO e muito menos com as pessoas que conheceu do grupo formado por Euclydes. Eles lhe pareciam arrogantes e se comportavam de uma maneira sombria e incoerente com os princípios que buscava. Então resolveu trilhar seu caminho sozinho na A.’. A.’. onde teria contato apenas com seu instrutor, Euclydes. Mais tarde ao avançar nos estudos ele receberia uma carta- testamento de Euclydes, onde se tornaria líder da A.’. A.’. após sua morte. Disse a Euclydes que não buscava este tipo de patente ou reconhecimento, mas Euclydes insistiu para que aceitasse aquele documento, um dia entenderia que era necessário.

Tarcísio tornou-se em pouco tempo um entusiasta de Thelema. Falava sobre o assunto por todos os cantos, debatia, ensinava, lia, ouvia, cantava e ouvia sem parar as músicas de Raul Seixas. Encarnou aquela fase de deslumbramento que toca todo iniciado, ou pessoa que se inicia em qualquer religião, seita ou até mesmo numa empresa. Não falava em outra coisa. Mas com ele foi diferente, porque nunca mais de deixou aquele entusiasmo de lado.

Euclydes que já era um homem aposentado e cansado viu em Tarcísio um líder potencial para o negócio da OTO. Ele era carismático, objetivo, apaixonado e empreendedor. Tudo que um bom líder precisava ter. Ele era um baita líder. Além disso, Euclydes carregava uma frustração não declarada de nunca ter conseguido organizar, nos padrões convencionais, a OTO no Brasil. Todas as suas tentativas foram frustradas. Ele também já havia delegado esta função a outros, mas foi em vão. O máximo que conseguira até então era reunir pequenos grupos taciturnos com pessoas esquisitas e fazer algumas publicações com tiragens bastante modestas. Ele viu em Tarcísio uma fonte de renovação e uma nova oportunidade para estruturar um trabalho sério.

Tarcísio foi iniciado e em pouco tempo conquistou os graus mais altos da ordem, na mesma velocidade recebeu de Euclydes a baqueta para tocar a Ordem no Brasil. Não titubeou, abraçou a causa e trabalhou incansavelmente, dando palestras, reunindo grupos, fazendo publicações e iniciando novos estudantes. Com entusiasmo e irreverência ele mesclou a festiva Thelemica, quando fazia discursos até em churrascos, com a dedicação séria, demonstrando cuidado e afeto com seus pupilos.

Foi uma das poucas escolhas certas de Euclydes, que por sua vez foi se recolhendo cada vez mais, deixando quase todos em dúvida sobre suas posições e convicções. O silencio chegava a soar como abandono. Talvez tenha sido somente cansaço de um homem que passou por infartos e adversidades. Tarcísio também carregava suas dúvidas, mas prosseguia entusiasmado.

Nessa importante fase de sua vida Tarcísio se reinventou de uma maneira surpreendente. Embora sua essência permanecesse a mesma, seus valores e sua visão existencial mudou radicalmente. A filosofia de Thelema tocou sua mente e aos poucos ele assumia novas atitudes diante da vida. Um homem que nasceu e foi criado na fé católica, depois de mais de quarenta anos encontrou uma nova orientação espiritual, na contramão frontal de todas as crenças que tinha até então.

Naturalmente uma mudança tão tardia provocava conflitos no seu íntimo. Ao mesmo tempo em que brindava as taças com uma filosofia de liberdade, cantando a maçã, de Raul Seixas, não sabia como reagir às demandas de uma filha adolescente. Não foi fácil para ele.

Surgia um mago. Lembrou-se de um sonho que teve com seu pai, muitos anos atrás, quando recebia das mãos dele uma espada. Profecia concretizada agora. Foi iniciado na senda mística, nos caminhos esotéricos e tornou-se um magista apaixonado.

VII – A destruição

O casamento que durava cerca de treze anos convivia com algumas fissuras que mal sanadas foram trazendo efeitos a cada vez que surgia uma discussão, coisa comum em qualquer relacionamento. Durante o casamento, por várias vezes Tarcísio flertou e se envolveu com outras mulheres. Por sua volta ele mesmo tinha um ciúme imenso da mulher e houve pelo menos dois episódios em que ele se sentiu ameaçado por um suposto amante, que existia pelo menos na sua imaginação. Esses eventos passaram, mas ela como boa capricorniana acumulava as mágoas e ensaiava terminar o casamento.

Havia entretanto algumas situações que a faziam conter o ímpeto de partir: a filha ainda entrando na adolescência, o receio de recomeçar do zero, que faz com que casamentos arruinados perdurem e principalmente o posicionamento do seu pai, que era frontalmente contra qualquer iniciativa da filha se separar. Isso deu uma sobrevida para a relação, mas um dia, acometido por um mal súbito por conta da pressão alta o pai dela faleceu. Ali se encerrava a principal barreira psicológica que a impedia de divorciar-se.

Tarcísio por sua volta, sem dúvida alguma amava aquela mulher, mas não conseguia mais renovar a relação e ele mesmo também se conformou com o desgaste cada vez mais aparente do casamento e seu fim iminente. Suas forças estavam minadas, principalmente por que a vida financeira do casal também já não ia muito bem.

Sua loja de materiais de construção que tinha passado por bons momentos, também amargou alguns períodos difíceis. Num daqueles reveses ele aceitou um sócio investidor, genro de Euclydes, que por um lado injetou dinheiro no negócio, mas por outro aumentou o volume de retirada mensal da empresa, o que teria um efeito negativo em médio prazo. As coisas foram se agravando, o sócio decidiu sair e as finanças ficaram ainda piores. A loja agora acumulava algumas dívidas e futuro era nebuloso. Então Tarcisio resolveu vender o negócio.

Num intervalo de poucos meses separou-se da mulher, vendeu o negócio e também sua bela casa. Tanto ele como a esposa saíram dessa situação sem quase nada na mão. A loja saiu a preço de banana e a casa foi vendida em suaves prestações, que seriam depositadas em uma conta de poupança para a filha do casal.

Uma queda radical. Ele terminava um ciclo marcante da sua vida, literalmente com a mão na frente e a outra atrás. Agora o a única coisa que lhe restava era a aposentadoria, seu nome intacto e uma pequena quantia no banco. Não tinha nada, mas não devia ninguém. Não era o suficiente para manter o padrão de vida que ele tinha até então. Mas dava para viver.

Ele entendia muito bem a gravidade de tudo aquilo que ocorrera e sentia um misto de grande frustração por não ter tido êxito em dois casamentos e uma depressão emocional que o abalava profundamente. Ele estava arrasado, com o desafio de criar mais uma filha, separado da mulher, ainda sem um horizonte claro pela frente, financeiramente limitado e com conflitos que dilaceravam sua alma. Ele se perguntava se seria essa uma forma de iniciação. Seria ele capaz de superar uma ordália desta magnitude?

Era difícil de entender e de crer como pode tudo ter se desmoronado de uma só vez, casa, negócios e família. Nada doía mais na alma de Tarcísio, do que uma casa vazia. O guerreiro amargava o seu maior receio: a solidão.

VIII – Das cinzas ressurge novamente

Numa festa na casa de um amigo, Tarcisio conheceu Elisangela, 25 anos mais jovem que ele e iniciou um affair. Logo após a separação já eram vistos juntos e já assumiam o namoro. Na ocasião ela trabalhava na cidade de Campos dos Goytacazes –RJ durante a semana e nos finais de semana ia para Paraíba do Sul. Tarcísio ainda meio atordoado com toda a recente mudança em sua vida, ainda estava sem rumo e como o namoro foi ficando firme, resolveu morar com Elisangela em Campos. Reuniu algumas coisas que tinha e partiu para lá.

Moraram em Campos alguns meses, até que uma crise se abateu sobre a empresa em que ela trabalhava, culminando na demissão de várias pessoas. Como as oportunidades naquela cidade eram limitadas partiram para Juiz de Fora – MG onde morava o filho mais velho de Tarcísio e também havia um cenário melhor para os dois, além disso, Paraíba do Sul continuaria sendo uma referencia para ambos, pois ficava a cerca de 80 km dali. Todo final de semana partiam para lá.

Ela logo conseguiu um novo emprego e ele tentava algumas coisas, com maior restrição por causa da idade. Com persistência conseguiu uma representação de camisas masculinas e isso lhe deu um fôlego temporário. Viajava por toda a região durante a semana e a rotina era muito cansativa. Mas o pior é que no fundo ele não se identificava muito com aquilo. Jamais se queixou, mas quem o conhecia bem podia ver no olhar dele.

Esta fase, ainda que não tenha sido plena, foi um recomeço, uma fase de novas descobertas, novas possibilidades e novos horizontes. Horizontes completamente diferentes daqueles de antes. Mas definitivamente eram novos.

Com o peito cheio de ansiedade por um vôo mais alto, ele resolveu abrir um novo comércio em Paraíba do Sul. Na cidade não havia nenhuma loja que vendesse tecidos para sofás, espumas e produtos similares para capotaria. Viu ali uma oportunidade e aventurou-se num ramo cuja experiência era nula. Bem ao estilo dele, empreendeu novamente. Sua moradia fixa continuou em Juiz de Fora, mas ia com freqüência em Paraíba do Sul por força do negócio e dos amigos.

Como aventura pouca era bobagem ele também resolveu construir uma casa em Juiz de Fora. Estava no terceiro relacionamento e construindo a terceira casa. Construiu mais uma vez, uma bela casa. Seria até possível acreditar que ele era um Engenheiro enrustido, porque quando sempre esteve metido com obras, de uma maneira ou de outra. Mas nunca demonstrou nenhuma frustração. Contudo era um construtor nato, alguém que tinha uma sede imensa de deixar um legado visível e as casas foram um exemplo disso.

Sua filha mais nova, agora com dezesseis anos resolveu morar com ele e Elisangela. Foi um período turbulento porque adolescente é um bicho meio indolente e sua esposa não tinha muito traquejo para lidar com a situação, então alguns atritos foram inevitáveis. Em certo momento foi tão forte que a filha foi morar com o irmão. Tarcísio o procurou para falar de sua grande frustração com isso. Acabou demonstrando que sentia-se mau por não ter estado mais perto dos filhos ao longo da vida, em função dos casamentos terminados e agora criar sua filha era uma questão de honra, ainda que tivesse que terminar o seu casamento se fosse necessário. Mas nessa senda ele realmente não teve êxito, pelo menos não da maneira como ele queria. Ele não escondia sua decepção consigo mesmo. Era o preço das suas escolhas. Um preço alto diga-se de passagem.

Nesta fase da vida ele olhava para trás e tentava de alguma forma, reparar algumas coisas que não ficaram muito bem resolvidas, tentava soltar os nós do passado. Fez isso demonstrando de todas as formas todo seu carinho e afeto por sua filha Fabiana nas oportunidades que esteve com ela, sua admiração e grande parceria com seu filho Michael, que sempre foi o confidente nos momentos mais tristes, sóbrios e também ébrios. Sua preocupação imensa em amparar Natalia, a filha mais nova, que ainda trazia algumas marcas da separação. Também buscou de todas as formas se reaproximar de sua primeira esposa, para que pudesse obter de volta pelo menos a possibilidade de diálogo. Para ele era insuportável que ela não lhe oferece ao menos um aperto de mão. Ele tanto fez que conseguiu estar com ela algumas poucas vezes e trocar algumas poucas palavras. Mas já era um avanço, considerando quase vinte anos de silencio. Com sua segunda esposa, Marlúcia, conseguiu manter um canal de comunicação aberto e só não falava mais com ela, porque era nítido o ciúme que ainda sentia. Ele realmente gostava dela, mas era resignado com o fim. Ao seu jeito ele tentou de todas as formas reunir, agregar e manter seus filhos e sua família unidos. Não conseguiu em sua plenitude, porque determinadas circunstâncias já não estavam mais sob o seu controle, mas o seu esforço e seu desejo bastaram para aqueles o amavam. Até porque era assim que ele era, intenso, imperfeito e amigo. E desse jeito, seus filhos o amavam.

Seus trabalhos em Thelema também prosseguiam firmes e ele ampliava sua rede de contatos e iniciava novos alunos. Fez várias publicações e se correspondia com gente de todo o Brasil. Ainda era um trabalho tímido, mas bastante honesto. Fez grandes amizades neste meio e aos poucos conquistava algum reconhecimento, mas ele já percebera que a filosofia thelemica não era agregadora e abrangente. Ali já tinha se dado conta de que tinha uma missão mais ideológica do que necessariamente empreendedora. Sabia disto, mas continuava deslumbrado e proclamando Liber Oz aos quatro cantos.

Numa das ultimas reuniões que teve com um grupo bem próximo, já no final eles se sentaram numa varanda pensativos e Tarcísio quebrou o silêncio falando a cada um daquele circulo, citando suas características, virtudes e agradecendo-o por isso. No fim alguém lhe dirigiu palavra com tom de dúvida dizendo “nossa… parece que você está se despedindo” e todos riram. Então ele terminou fazendo um pequeno ensaio cheio de metáforas, que era uma característica muito marcante dele, sobre a vida e a morte e terminou dizendo que um Thelemita não podia temer a morte. Ninguém entendeu muito bem o porquê daquela mensagem, o significado veio pouco tempo depois.

IX – Os últimos dias

Era uma noite de sexta-feira véspera do feriado de semana santa, dezoito de abril de 2003, no final da noite Michael estava na varanda de sua casa, deitado numa rede pensando em nada e contemplando o horizonte estrelado. Sua esposa apareceu na janela e o chamou para ir dormir, então ele comentou que estava sentindo uma angústia no peito, “acho que alguma coisa ruim vai acontecer…”

Foi se deitar, todas as luzes apagadas. De olhos fechados ficou ali pensativo e com a nítida sensação de que havia alguma coisa ali ao lado de sua cama. Achou melhor não comentar, para não despertar sua esposa, mas ela quebrou o silêncio “Michael, eu tô vendo uma luz verde aí do seu lado”. Ele disse que estava sentido.

No dia seguinte, na madrugada de sábado para domingo, estava num local todo branco, de azulejos até o teto e viu seu pai caído no chão, encostado na parede, desacordado. No chão havia uma poça de sangue. Michael pegou uma espécie de cuia, colheu um pouco do sangue no chão e começou realizar uma espécie de ritual, num idioma não reconhecível, enquanto seu pai estava ali, estático e morto. Mas ainda podia ouvir e sentir. Seu corpo morrera, mas ainda havia atividade cerebral.

Era cerca de três da manhã e Michael acordou completamente assustado com aquele pesadelo, muito forte. Acordou sua esposa e imediatamente acordou sua esposa. Estava nervoso e perturbado com o sonho. Queria ligar para o pai para lhe contar sobre o sonho, mas era madrugada. Era só um pesadelo. No dia seguinte,um domingo ainda estava perturbado com a força das imagens daquele pesadelo, mas seu pai estava curtindo um passeio na praia e achou melhor não perturbá-lo com isso.

Tarcísio tinha ido para Cabo Frio – RJ , região dos lagos, para passar o feriado com a mulher e alguns amigos. Retornou dia 22 de abril, terça-feira, para Paraíba do Sul e combinou um churrasco com a turma. Por volta das sete da noite, foi ao mercado com um amigo para comprar carne. No supermercado sentiu-se mal, algo parecido com uma dor de estômago o incomodou muito e pediu para o amigo levá-lo para casa. No caminho o incômodo aumentou e partiram para o hospital.

Foi atendido, pílula embaixo da língua, chamaram uma cardiologista e enquanto ela ainda lhe fazia algumas perguntas ele apagou. 52 anos. Infarto agudo do miocárdio.

X – O trem das sete horas

As pessoas estavam perplexas ao saber da notícia. Vinham de todo o lado. Amigos, parentes, conhecidos, vizinhos… Alguns tinham passado a madrugada inteira ali e quanto mais chegava o horário do por do sol, mais a dor aumentava e mais pessoas chegavam.

Enquanto ele seguia junto com os últimos raios de sol no horizonte, seu filho foi para bem perto dele e começou a dedilhar uma canção no violão. Pediu para que o amigo Toninho Buda se aproximasse e cantaram juntos enquanto ele partia “ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, ói o trem não precisa bagagem nem mesmo passagem no trem”. “Quem vai chorar? Quem vai partir? Porque o trem está chegando, ta chegando na estação, é o trem das sete horas…” Enquanto isso, seus alunos lhe rendiam uma ultima homenagem, unidos em um círculo, fazendo o ultimo Ritual entoando palavras sagradas. “Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões. Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons”

E ele se foi deixando um vazio imenso. Não há um amigo que ainda não fale dele com lágrimas nos olhos e com um nó na garganta.

Epílogo

Muitos meses se passaram desde que pegou aquele trem. Então numa manhã ensolarada de céu perfeitamente azul, Walda estendia vários lençóis brancos sobre o varal num gramado verde que ainda guardava um pouco do orvalho da manhã. A brisa bem suave trazia um ar fresco que agitava gentilmente as folhas das árvores. Ele foi atravessando vagarosamente o gramado entre os lençóis e apareceu bem na frente dela. Com um sorriso largo no seu rosto claro disse a ela que veio se despedir. Deu-lhe um abraço longo e afetuoso e pediu que deixasse um beijo para os filhos. E se foi.

Frater BenHoor foi co-fundador e Presidente da Ordem dos Cavaleiros de Thelema.

Esta biografia foi escrita pelo filho de Tarcísio, Michael Oliveira.

 

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Postado em

17 de junho de 2017

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